É provavelmente verdade que o açúcar modificou a dieta ocidental como nenhum outro produto. E também é certo que seu consumo – direto ou indireto – desponta como causa principal da pandemia de obesidade, tendo o refrigerante como seu carro-chefe de mais popularidade.
A reportagem de capa da Veja desta semana (23/9/9) está coberta de razão neste ponto, embora tenha sua natural dificuldade em identificar claramente o verdadeiro vilão detrás do açúcar. Seus argumentos em saúde pública são certeiros, especialmente quando cita o prof. Walter Willett do departamento de nutrição de Harvard: “Quando um adulto se acostuma a comer tudo doce, fica difícil apreciar a doçura suave de uma cenoura ou uma maçã”. Ou então quando destaca que além de grande promotor da obesidade o açúcar está associado a quase todas as moléstias degenerativas, do ataque cardíaco ao derrame cerebral e diabetes, incluindo vários tipos de câncer como pâncreas e intestinal.
As estatísticas são macabras: um terço dos americanos com mais de 20 anos são obesos, em crianças de 6 a 11 anos quase 20% são obesas. E o Brasil tem ampliado aceleradamente o percentual do orçamento familiar destinado à compra de refrigerantes e também a percentagem de obesos no total da população com 20 anos ou mais (mais de 12% entre as mulheres e quase 10% nos homens). O Brasil é parte essencial dessa escalada mundial: promete contribuir decisivamente para esse boom de obesos se considerarmos a popularidade do açúcar e o fato do nosso país ser o maior produtor, maior exportador do mundo e um dos maiores consumidores de açúcar do planeta (quarto consumidor mundial, mais que os Estados Unidos e só perdendo para a Índia, a União Européia e a China).
Há países que estão proibindo propaganda de refrigerantes na TV (Inglaterra e França), outros proíbem venda de refrigerantes nas escolas e imediações (Alemanha, Bélgica) mas não aparece qualquer política mais séria, nada que possa fazer frente, de fato, ao rolo compressor – do qual o açúcar é parte – responsável pelo crescente número de obesos que já chega além de 400 milhões, sendo que se forem computados os que estão acima do peso, chega-se facilmente aos 1,6 bilhões mundiais.
E essa vem a ser precisamente a dificuldade da grande mídia mesmo quando tece bons argumentos contra o consumo excessivo e brutal de açúcar (embora deixe mais de lado o álcool): não localiza e nem identifica o verdadeiro problema por trás do açúcar. O acúmulo de informações científicas sobre o açúcar em sua condição de problema de saúde pública é tamanho que aqui e ali certos países tomam aquelas medidas tópicas que por serem tópicas, tímidas e tardias frente a tamanha calamidade, só fazem revelar o poder dos grandes grupos econômicos que lucram com o açúcar. Grupos cujo poder de fogo para retardar/barrar efetivas medidas para combater o problema pela raiz é gigantesco.
Por isso essa mídia fala que o “açúcar escravizou gerações de africanos nas Américas, promoveu guerras e impérios, ergueu e pulverizou fortunas”, em uma inversão lógica, histórica e econômica quase banal já que “o açúcar” não é sujeito de nada, inversão que se presta muito bem para esconder os promotores de mais essa droga moderna e também da cultura dessa droga. Tais grupos são até eventualmente denunciados – um ou outro deles - por sua influência sobre governos, mas nada que permita ir à questão-chave: trabalhadores da saúde, da educação, da indústria de alimentos e dos canaviais e a população que mais sofre as conseqüências dessa ditadura econômica do açúcar sobre a saúde pública (e seus apoiadores) são os que deveriam dar a última palavra sobre o que fazer, que políticas públicas mais profundas se deveria implementar – na saúde, na educação, na mídia, na vida social e econômica - para mudar esse estado de coisas.
Gilson Dantas
Médico, Brasília, DF
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